terça-feira, junho 15, 2010



A Curva
Denílson Neves

Uma fração de segundo é pouco tempo para se tomar decisões importantes, eu sei, mas não espere que o destino bata na porta antes de entrar. A vida é uma estrada sinuosa de mão única, e a gente pensa que se conhece até o dia em que uma curva mais acentuada nos obriga a pensar rápido, como aconteceu comigo. A história que vou contar agora pode não ser das melhores, mas com certeza o deixará mais alerta.

Eu estava parado no ponto, esperando o ônibus como fazia todas as manhãs. Cheguei a vê-lo virando a esquina, e até dei sinal, mas não houve tempo.

- Pega ladrão! Pega ladrão!

Eu não sei o que me levou a agir da forma como agi. Talvez aquela senhora tenha lembrado demais a minha mãe, não sei. Parece loucura, mas eu não me via correndo atrás do assaltante, apesar de estar efetivamente perseguindo-o. Era como se o meu corpo se movesse por conta própria.

Corremos ladeira acima, e eu, boquiaberto, via a distância entre nós se reduzir a cada passada. Uma parte de mim, dominante, queria pará-lo a qualquer custo e recuperar a bolsa da senhora que lembrava a minha mãe. Uma outra parte, porém, lutando para assumir o controle, estava realmente preocupada com o que viria depois.

Seguimos nessa luta, até que o improvável se confirmou. Eu, que nunca fui de me meter em brigas, nem nos tempos de menino, sedentário e acima do peso, não só alcancei o jovem, como ainda o derrubei no chão. E esta foi, talvez, a pior coisa que fiz nesses maus vividos anos que já vão longe. Eu devia ter previsto, mas o que fazer quando a vida não nos dá tempo?

Tudo o que eu queria era recuperar a bolsa da senhora. Depois deixaria o ladrão fugir, sem maiores conseqüências. Não sou da polícia, nem nunca fui de heroísmos. Longe disso. Mas foi só o tempo de tomar a bolsa de volta e outro homem apareceu, do nada, e começou a dar socos na cabeça do rapaz caído ao chão. Tentei acalmá-lo, mas ele estava fora de si. Com esforço consegui afastá-lo, mas de nada adiantou, porque outro surgiu, não sei de onde, aos gritos de “Mata! Mata esse vagabundo desgraçado!” e foi logo enchendo o infeliz de pontapés, como se fosse um saco de lixo. Outros foram chegando, um após o outro. Quase entrei em desespero quando vi um deles pisotear covardemente a cabeça do indefeso. E eram tantos braços e pernas a desferir golpes de extrema violência que só mesmo por milagre o sujeito sobreviveria.

Comecei a berrar por socorro, mas ninguém me dava ouvidos. Nenhuma boa alma veio em meu auxílio. Todos os vestígios de humanidade pareciam ter se apagado por completo. O que eu via mais se assemelhava a um bando de animais carniceiros disputando um pedaço da presa. Minhas últimas esperanças caíram por terra quando percebi que até mesmo as mulheres incentivavam aquela carnificina. Uma delas sentenciou que lugar de bandido é debaixo da terra, e as outras aplaudiram.

No auge do meu sentimento de impotência, sentei no chão com as mãos sobre a cabeça e comecei a chorar. A única coisa que eu conseguia pensar era que, por minha culpa, um jovem estava sendo linchado, e eu nada podia fazer para impedir. Foi quando senti um toque de mão no ombro. Era a senhora do ponto de ônibus perguntando se eu poderia lhe devolver a sua bolsa.

Só então me dei conta de que a bolsa dela esteve comigo o tempo todo. Sem uma palavra, os olhos cheios d’água, estiquei o braço mecanicamente.

- Obrigada, meu filho. Você foi muito corajoso. Nem sei como lhe agradecer.

Olhei para aquela senhora que lembrava tanto a minha mãe, me chamando de filho, e o choro, antes contido, explodiu no peito. Ela abraçou-me, como minha mãe teria feito, e me disse.

- Não chore, filho. Isso logo vai acabar.

Mal ela terminou a frase, um carro da polícia militar virou a esquina e dois policiais saltaram apressadamente, dispersando a turba enfurecida. Um deles tomou o pulso do rapaz e, ao verificar que ele ainda estava vivo, pediu ao companheiro de farda para ajudá-lo a retirar o corpo da calçada. O correto seria usar uma maca, mas não havia nenhuma. Tiveram que carregá-lo suspenso pelas pernas e axilas. O sangue, gotejando abundantemente, deixou marcas no trajeto até o banco traseiro da viatura.

- Deixa morrer!

- Lugar de bandido é na vala!

Mas o carro deu partida, e o rapaz foi salvo, para decepção geral. A impressão que dava era que os policiais estavam tirando ossos da boca de cães.

            Tantos anos se passaram e esse dia ainda repercute na minha memória. Comparadas a esta, as outras curvas foram apenas leves ondulações. Nunca consegui entender o que me levou a perseguir aquele homem. Quando penso nisso, muitas vezes me pergunto se tudo não passou de um sonho mal sonhado. Na minha idade, para falar a verdade, já nem tenho certeza se as coisas se deram realmente como eu contei. Porque nunca ninguém falou comigo a respeito, ninguém nunca me apontou na rua, nunca ninguém me reconheceu...
Será que eu não assisti a cena da janela do meu apartamento e fantasiei...

             Nunca contei essa história antes. Nem para os filhos, nem para os netos, e nem mesmo para os meus bisnetos. Porque nunca tive certeza. Sempre me senti um mero expectador, apesar de ter sido o pivô dos acontecimentos daquela fatídica manhã.
                   Tantas vezes revivi em sonhos aquelas cenas, e isso só serviu para me confundir ainda mais.

Queria tanto poder falar com alguém que tivesse testemunhado tudo, ainda que da janela, mas seria difícil encontrar uma alma viva. É o preço que pagamos por envelhecer. Os amigos vão-se indo, um após o outro, nos deixando para trás com as nossas dores. Algumas que nem sabemos se realmente nossas, como essa maldita... Agora mesmo ela está aqui, ao meu lado, observando-me enquanto escrevo o que nunca tive coragem de dizer.

                             Quem sabe assim ela me deixa morrer em paz.

Vou ficando por aqui, pois a vista já me arde e o corpo pede cama, mas não sem antes deixar uma última advertência.
Lembre-se sempre: o perigo se esconde nas curvas.
E a estrada da vida não tem placas!

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